29 março, 2011

A crise

Sou do tempo em que as primeiras letras eram ensinadas pela família (avós, pais, irmãos, tios, primos e por aí fora) muitas das vezes com a ajuda da cartilha maternal do João de Deus; os primeiros passos eram dados numa escola primária onde um(a) sever(o)(a) mas competente professor(a) nos ensinava a ler, escrever e contar, nos fazia descobrir a história do País, um tanto fantasiada é verdade, mas que era obrigatório conhecer, nos fazia percorrer Portugal de lés a lés atravessando rios e seus afluentes, percorrendo linhas negras de caminhos de ferro, cavalgando montes e montanhas estampados num mapa pendurado num prego, mostrava como éramos por dentro com um recato próprio duma clausura, fazia com que descobríssemos a variedade da fauna e da flora neste jardim pequenino arrumado a um canto da galáxia.

Para aprender tudo isso, não tínhamos máquinas de calcular,computadores, magalhães, cadernos/livros com repostas de múltipla escolha, lapiseiras, esferográficas com duas e mais cores, marcadores, borrachas técnicas, correctores, cadernos para exercícios de imaculadas folhas brancas ou levemente coloridas, agrafadores,clips, capas plásticas e demais parafernália habitual neste universo consumista.

Usávamos uma lousa com esquadria em madeira, que se partiam de vez em quando o que dava geralmente origem a um par de tabefes ou uns puxões de orelhas, escrevíamos nela com um lápis a que chamávamos pena feito com o mesmo material que, por vezes, fazia um ruído irritante ao escrever e se apagava com um pedaço de pano ou com o dedo préviamente humedecido na nossa saliva; uns cadernos de capa em papel vegetal com o interior em folhas de um branco amarelecido e que, ou eram lisos, ou tinham uma ou duas linhas, consoante o nível de habilidade caligráfica, onde escrevíamos com uma caneta de madeira com um aparo chamado bico de lança, que tinha de ser embebido amiúde num tinteiro divido com o nosso companheiro de carteira, ou então com um lápis que geralmente era fornecido pelas próprias livrarias onde os nossos progenitores faziam as suas compras ou por outros estabelecimentos comerciais ou industriais que aproveitavam para fazer o reclame da sua empresa. Tínhamos uma sebenta em papel custaneira onde escrevíamos a lápis e que servia como auxiliar nas contas e nos desenhos usando como régua aquelas de madeira da Pasta Medicinal Couto, com a escala em amarelo berrante, ou outras mais elaboradas feitas do mesmo material, na sua falta então era mesmo um dos lados da esquadria da lousa.

O nosso computador era a tabuada e a tabela de equivalências, que nos ensinava a tabiuada até à dos doze, nos esclarecia que um quartilho era equivalente a meio litro ou 1/4 de canada, um quintal não era apenas um terreno com uma pequena horta mas que também podia ser o peso de quatro arrobas, um estere era igual a um metro cúbico que por sua vez era igual a mil litros ou uma grosa tinha doze dúzias; a libra valia vinte xelins e cada xelim valia doze pences, pois nesse tempo a velha Albion não se tinha ainda convertido ao sistema decimal.

Já nessa altura, o ensino se retraía, pois tinha desaparecido a quinta classe e o botas queria um povo não muito evoluído intelectualmente, pois quanto menos se sabe menos se sente a falta do saber.

Muitos de nós ficávamos por ali, o que não impedia que arranjássemos trabalho (não confundir com emprego) e contribuíssemos para o crescimento do PIB.

Hoje, na generalidade, com a modernidade e a evolução(!!!), temos montes de licenciados e mestres que sendo técnicos de alguma coisa sabem muito pouco do restante, e despindo a generalidade dos gadgets habituais - carrinho a brilhar, roupinhas feitas em massa mas de marca sonante, telemóveis modernaços, relógios com 1001 aplicações mas que nem sempre andam certos, portátil a tiracolo ou na luzidia pasta, prole na escolinha privada da zona que tem um contínuo a tomar conta de algumas centenas de mafaricos, mafarricas e mafarriquinhos, as fériazinhas nos paraísos tropicais em estâncias fechadas e a família reduzida ao pessoal que vive lá em casa - não compra livros, a não ser para decorar a casa ou encher os armários, não vão ao teatro pois é caro e caíu em desuso, a não ser que haja alguma bambochata do La Féria, visitar um museu, uma igreja, um monumento, assistir a um concerto de música séria (não tomar séria por clássica) são perdas de tempo, segundo dizem...

Sim, de facto, estamos em crise, e é das grandes, e, se não damos volta a este superficial estado de coisas, é melhor emigrarmos ou deixarmo-nos ficar na praia a ouvir o mar e esperar que a maré suba.

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