03 janeiro, 2009

O Porto que recordo

Há quem se entretenha a fazer balanços, eu prefiro recordar.

Recordar a cidade que me viu nascer e onde as ruas estavam cheias de gente, quer espreitando as montras com as novidades da estação, quer enchendo os mercados do Bolhão, Bom Sucesso e Foz - os mais afortunados - ou os da Rua Escura, da Ribeira ou da Praça de Lisboa, para aqueles a quem a contabilidade se fazia em tostões e não em escudos.

O Porto dos cafés, com clientela específica - estudantes no Piolho e Aviz, artistas plásticos no S. Lázaro, professores universitários no Progresso, escritores, poetas e pensadores no Majestic, médicos e enfermeiros do Sto. António no S.Paulo, a burguesia de nocturnos hábitos n' A Brasileira, os homens do bilhar no Guarany e Águia D'Ouro, a malta do TEP no Leão D'Ouro, e as muitas tertúlias que se espraiavam pelos muitos outros de cujo nome me recordo ainda, o Rialto, o Rivoli, o Imperial, o Tropical, o Chave D'Ouro, o monumental Palladium, o Pereira, o Ceuta, o Orfeu, o Velasquez e tantos outros, alguns dos quais serviram de cobertura para outras actividades menos edificantes, onde por vezes nas traseiras se jogava forte e feio, ou onde pousavam algumas aves-do-paraíso à procura de freguês mais dedicado à deusa Afrodite.

O Porto dos cinemas e da animação cultural, onde coexistiam salas de espectáculos e grupos amadores, sem que uns ofuscassem os outros, fazendo da cultura um modo de diversão e não uma imposição veiculada pelo ensino oficial ou um bem só destinado aos mais bafejados pela fortuna. Quem não se lembra do grupo d' Os Modestos, do TUP ou doutros mais pequenos que se exibiam nas salas da Cooperativa do Povo Portuense, ou na dos Fenianos, para já não falar no saudoso TEP, exportado para a cidade fronteira por motivos que não estarão ligados à falta de espaço, ou nos abandonados coretos que se vão degradando por essa cidade fora.

Nesse tempo, a música clássica, a ópera, o circo, a revista, o cinema ou o teatro não eram estranhos à população, pois todos tinham o seu espaço onde disfrutar do que gostavam, desde os espectáculos populares no palco do Palácio de Cristal, passando pelos artistas de rua e acabando nos esquecidos robertos e marionetas.

Hoje, todos esses eventos se escondem em privilegiados locais, onde o vulgo receia entrar, e, embora os preços, por vezes, nem sejam exorbitantes, não há espaço que chegue para os poucos que somos.

Recordar o pioneirismo na área dos transportes, com o recurso à energia eléctrica (eléctricos e troleicarros) que foram abandonados em favor de outros mais poluentes, vias férreas que se abandonaram para serem substituídas por camionetas em segunda mão, ou por quilómetros de estradas e auto-estradas caríssimas, alimentadas por montes de folheta onde arriscamos a vida em nome da liberdade individual.

O comércio, pedra de toque da cidade, era a imagem da diversidade, havia de tudo, para todos os gostos e todas as bolsas, gerava empregos, criava bem-estar, dinamizava a economia.

Tanto se podiam comprar umas chancas de madeira, sapatilhas de corda ou botas de pneu como umas sandálias do mais maleável couro, uns sapatos de pele de cobra ou uns sapatos feitos por medida. O mesmo se aplicava a luvas, carteiras, chapéus, casacos, fatos, ferros de engomar, fogões, ceras, louças, mobílias, relógios, jóias, canetas, lápis, cristais, porcas, parafusos, canários, peixes de aquário, sei lá o que mais...

E que dizer das idas ao aquário da Foz, ao Museu Etnográfico, ao pequeno zoo do Palácio, à Feira Popular, ao mini-circuito do Lima, às matinés clássicas do Batalha, ou ao passeio nocturno sanjoanino, cujo circuito para os menos atrevidos - os mais atrevidos íam até às Fontaínhas - ía desde o cruzamento da Alexandre Herculano com a Duque de Loulé-Batalha-Santa Catarina-Formosa-Sá da Bandeira-Sampaio Bruno-Aliados acima-Aliados abaixo-Praça-Clérigos-Leões (os mais valentes seguiam para o Palácio)-Santa Teresa-Fábrica (num dos cafés para descansar as pernas e trincar qualquer coisa) e regresso a penates.

E a indústria? Falar dos automóveis Edfor feitos pela EFI, dos lanifícios em Lordelo do Ouro, dos curtumes no Bessa, da fundição e da cerâmica de Massarelos, das moagens Villares e da Restauração, das fábricas de botóes, de artes gráficas, dos estaleiros, das pescas, do muito que havia e que foi desaparecendo na voragem do tempo e das ilusões.

Este Porto que recordo, muito pouco tem a ver com o Porto actual, e a culpa não é deste nem daquele, é uma culpa colectiva que se distribui um pouco por todos.

O progresso (!) afinal trouxe-nos uma data de presentes envenenados que por força de um unanimismo bacoco e serôdio poderíamos ter evitado por ter visto o que outros já tinham sofrido por fazerem o mesmo.

A televisão matou o cinema, mas matou-o por se ter tornado uma alternativa cómoda e relativamente acessível a todos, mas para isso teve de apresentar bons programas, distribuir cultura, e apresentar soluções, coisa que agora raramente faz, nivelando cada vez mais por baixo.

Os bancos mataram os pequenos consultórios médicos, escritórios de advogados, agentes de seguros, casas de habitação, pequenos cafés e restaurantes, pequeno comércio que ofuscado por dinheiro fácil seguiu em direcção a reformas antecipadas e romagem para as periferias.

Por outro lado, o comércio perdeu o seu fulgor, e praticamente toda a gente vende o mesmo e quem quer algo diferente manda vir de fora, ou vai lá fora buscar.

A indústria, essa, está moribunda, sem saber se há-de tomar o remédio que a cure ou se se deixa morrer lentamente.

Assim a cidade não pode (vai) sobreviver, é preciso urgentemente que algo ou alguém consiga congregar vontades, avançar ideias, escolher um rumo e a seguir solicitar meios.

É no meio das grandes crises que surgem alternativas que potenciam o futuro, vamos a ver se não nos vamos perder em questões acessórias deixando para mais tarde o que é urgente e para isso, continuo a dizer, todos não somos demais.

2 comentários:

tulipa disse...

OLÁ AMIGO TEÓFILO

Que bom vir recordar alguns desses belos lugares consigo.
É a pessoa certa para nos fazer recordar esses locais, pois pelo que sei, sempre viveu no Porto. Já eu vivi perto do Porto durante 4 anos e, foi nessa ocasião, tinha o meu filho 3 aninhos, que aprendi a andar sozinha no Porto, de transportes públicos...e, a pé.

Corri tantas e tantas ruas, ruelas, travessas, com ele pela mão, desde as 8h 30m da manhã até às 17h, quando o Pai saia do trabalho e nos levava para casa.
Belos tempos!!!

Agora, quando vou ao Porto é de visita, mas vou quase sempre aos mesmos sitios.
mercado do Bolhão; Café Majestic.
Além da Rua de Sta. Catarina, rua do Coliseu, etc...

Gostei desta viagem virtual consigo pelo Porto.

Teófilo M. disse...

Pois é tulipa, mas o Porto tem vindo a encetar um caminho que não leva a lado algum.

Seria bom que alguém conseguisse inverter a situação, mas não me parece fácil.