Em Março de 74, trabalhava eu numa empresa que fazia questão de nos aumentar anualmente numa média entre 10 a 20%, geralmente superior ao que se passava no setor e ano após ano aumentava os seus lucros e expandia o seu negócio.
Essa mesma empresa, pagava-nos o Imposto Complementar - que era o nome do IRS da altura - para além de me dar o subsídio de Natal (que não era obrigatório); pagava-me as férias (eu sei que nos primeiros cinco anos de trabalho só tinha direito a dez dias úteis, os que tinham entre 6 a 10 tinham quinze dias, os de 11 a 20 tinham vinte e os que ultrapassavam os 25 tinham direito a vinte e cinco); deixavam-nos sair mais cedo ou entrar mais tarde se andassemos a estudar e não havia ainda cláusulas protetoras dos trabalhadores estudantes; oferecia aos empregados e sua família nuclear, pelo Natal, uma festa com distribuição de brinquedos numa casa de espetáculos, dava-nos pela Páscoa qualquer coisa para ajudar a pagar as amêndoas e o pão de ló, o patrão fazia questão de conhecer os colaboradores todos (e já ultrapassavamos a centena no país), juntava-nos em jantares onde cada qual pagava conforme o ordenado que auferia, sustentava um grupo desportivo para nos distrairmos nos tempos de lazer e chegou a construir um pavilhão que ainda hoje existe e é utilizado, enfim, era uma empresa a sério e um patrão que merecia o seu nome e a amizade que a ele dedicávamos.
Depois veio o 25 de Abril e sentimo-nos felizes, pois agora poderíamos expressar livremente as ideias cá fora e não apenas dentro da empresa e julgávamos que o paraíso aí estava... à porta.
Azar nosso, a história mostrou-nos o contrário.
Em nome da igualdade passámos a pagar do nosso bolso o Imposto Complementar pois o estado entendeu que era vedado às entidades patronais substituir-se aos deveres da classe trabalhadora! Não entendi o alcance da medida, pois parecia-me que se começava a nivelar por baixo em vez de se puxar os que estavam no fundo, mas adiante.
O nosso patrão, como ficou livre desse encargo, meteu-nos no vencimento desse ano o equivalente ao que tínhamos pago no ano anterior e passou a comparticipar nas despesas de saúde que ficavam a nosso cargo depois de deduzidas da parte recebível pela assistência médica global, abriu uma cantina que pagava do seu bolso, com refeições de qualidade e a preços de saldo e criou ainda uma biblioteca.
O governo, pelo seu lado, ao ver isto passou a instituir o subsidio de almoço que, para os que almoçavam na cantina revertia a favor da mesma, mesmo que o patrão não quisesse pois estava na lei e esta era para aplicar, e como as resistências começassem a aparecer resolveram nacionalizar a empresa.
Lá se foi o complemento para a saúde, acabaram-se os aumentos habituais, o grupo desportivo quase desapareceu mas passou a existir uma casta nova apelidada de comissões administrativas que rapidamente e em força passaram a ter carrinho da empresa, ir às reuniões da Intersindical, abrir a porta à dualidade de comissões de trabalhadores/sindicais, acabaram com o dinheiro das amêndoas e do pão de ló mas deram-nos mais dias de férias.
Isto foi apenas o começo, depois começaram a aparecer uns senhores que sabiam de tudo e se chamavam economistas ou gestores - antes eram apenas seis e respeitados - e outra gente que expeditamente apareceu diplomada ao fim de cinco anos depois de ter feito a quarta classe, e começou a criar-se uma oligarquia dentro das empresas bem pior do que a que já tinha tentado aparecer mas que o ou alguns patrões tinham mantido debaixo de olho... só que agora o patrão estava em Lisboa e ninguém o conhecia.
Havia até uns pândegos que diziam que éramos patrões de nós mesmos!
Havia até uns pândegos que diziam que éramos patrões de nós mesmos!
Nesta evolução constante, verifico que agora já nem subsídio de Natal tenho, o de férias está em vias de extinção, do mesmo modo que foi extinto o Imposto Complementar de antanho, não sei o que é feito duma coisa que se chamava semana inglesa mas parece que vai voltar a servir, a semana de 35 horas caminha para as 40 e a de 40 para as 45, tudo em nome da liberdade e democracia.
Em Abril de 74 disseram-nos que a culpa tinha sido do Salazar, do Marcelo, do Américo, do Tenreiro, dos Melos, do Champalimaud, dos Espírito Santo, da brigada do reumático, etc., etc.
Agora que uns já morreram e os restantes ou andam por aí e dão empregos ou deixaram fundações que trabalham para o bem comum; que dos homens do 25 de 74 uns já morreram e os que andam por aí ninguém lhes passa cartão, podem por favor indicar-me quem são os culpados deste regredir que sinto e que não entendo?
Será que a liberdade é assim tão cara? Ou será que estamos fadados para ser conduzidos pela rédea, pois quando nos tiram o cabresto a maior parte só faz asneiras.
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