27 outubro, 2011

Recordando

Em Março de 74, trabalhava eu numa empresa que fazia questão de nos aumentar anualmente numa média entre 10 a 20%, geralmente superior ao que se passava no setor e ano após ano aumentava os seus lucros e expandia o seu negócio.
Essa mesma empresa, pagava-nos o Imposto Complementar - que era o nome do IRS da altura - para além de me dar o subsídio de Natal (que não era obrigatório); pagava-me as férias (eu sei que nos primeiros cinco anos de trabalho só tinha direito a dez dias úteis, os que tinham entre 6 a 10 tinham quinze dias, os de 11 a 20 tinham vinte e os que ultrapassavam os 25 tinham direito a vinte e cinco); deixavam-nos sair mais cedo ou entrar mais tarde se andassemos a estudar e não havia ainda cláusulas protetoras dos trabalhadores estudantes; oferecia aos empregados e sua família nuclear, pelo Natal, uma festa com distribuição de brinquedos numa casa de espetáculos, dava-nos pela Páscoa qualquer coisa para ajudar a pagar as amêndoas e o pão de ló, o patrão fazia questão de conhecer os colaboradores todos (e já ultrapassavamos a centena no país), juntava-nos em jantares onde cada qual pagava conforme o ordenado que auferia, sustentava um grupo desportivo para nos distrairmos nos tempos de lazer e chegou a construir um pavilhão que ainda hoje existe e é utilizado, enfim, era uma empresa a sério e um patrão que merecia o seu nome e a amizade que a ele dedicávamos.
Depois veio o 25 de Abril e sentimo-nos felizes, pois agora poderíamos expressar livremente as ideias cá fora e não apenas dentro da empresa e julgávamos que o paraíso aí estava... à porta.
Azar nosso, a história mostrou-nos o contrário.
Em nome da igualdade passámos a pagar do nosso bolso o Imposto Complementar pois o estado entendeu que era vedado às entidades patronais substituir-se aos deveres da classe trabalhadora! Não entendi o alcance da medida, pois parecia-me que se começava a nivelar por baixo em vez de se puxar os que estavam no fundo, mas adiante.
O nosso patrão, como ficou livre desse encargo, meteu-nos no vencimento desse ano o equivalente ao que tínhamos pago no ano anterior e passou a comparticipar nas despesas de saúde que ficavam a nosso cargo depois de deduzidas da parte recebível pela assistência médica global, abriu uma cantina que pagava do seu bolso, com refeições de qualidade e a preços de saldo e criou ainda uma biblioteca.
O governo, pelo seu lado, ao ver isto passou a instituir o subsidio de almoço que, para os que almoçavam na cantina revertia a favor da mesma, mesmo que o patrão não quisesse pois estava na lei e esta era para aplicar, e como as resistências começassem a aparecer resolveram nacionalizar a empresa.
Lá se foi o complemento para a saúde, acabaram-se os aumentos habituais, o grupo desportivo quase desapareceu mas passou a existir uma casta nova apelidada de comissões administrativas que rapidamente e em força passaram a ter carrinho da empresa, ir às reuniões da Intersindical, abrir a porta à dualidade de comissões de trabalhadores/sindicais, acabaram com o dinheiro das amêndoas e do pão de ló mas deram-nos mais dias de férias.
Isto foi apenas o começo, depois começaram a aparecer uns senhores que sabiam de tudo e se chamavam economistas ou gestores - antes eram apenas seis e respeitados - e outra gente que expeditamente apareceu diplomada ao fim de cinco anos depois de ter feito a quarta classe, e começou a criar-se uma oligarquia dentro das empresas bem pior do que a que já tinha tentado aparecer mas que o ou alguns patrões tinham mantido debaixo de olho... só que agora o patrão estava em Lisboa e ninguém o conhecia.
Havia até uns pândegos que diziam que éramos patrões de nós mesmos!
Nesta evolução constante, verifico que agora já nem subsídio de Natal tenho, o de férias está em vias de extinção, do mesmo modo que foi extinto o Imposto Complementar de antanho, não sei o que é feito duma coisa que se chamava semana inglesa mas parece que vai voltar a servir, a semana de 35 horas caminha para as 40 e a de 40 para as 45, tudo em nome da liberdade e democracia.
Em Abril de 74 disseram-nos que a culpa tinha sido do Salazar, do Marcelo, do Américo, do Tenreiro, dos Melos, do Champalimaud, dos Espírito Santo, da brigada do reumático, etc., etc.
Agora que uns já morreram e os restantes ou andam por aí e dão empregos ou deixaram fundações que trabalham para o bem comum; que dos homens do 25 de 74 uns já morreram e os que andam por aí ninguém lhes passa cartão, podem por favor indicar-me quem são os culpados deste regredir que sinto e que não entendo?
Será que a liberdade é assim tão cara? Ou será que estamos fadados para ser conduzidos pela rédea, pois quando nos tiram o cabresto a maior parte só faz asneiras.

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