22 agosto, 2005

Chegou o futebol

O Primeiro-ministro já poderá ficar mais descansado, pois os incêndios rapidamente irão cair no esquecimento, pois chegou a época futebolística.

Os noticiários cada vez irão ser mais curtos e trarão mais peças sobre o que fez o jogador fulano, o que disse o dirigente sicrano, o que comentou o 'sinhor manjor', porque é que não chega o avançado para o clube lá da terra, o que se disse no programa "os não-sei-qantos-da-bola-no-dia-seguinte", e por aí fora.

Vão "incendiar-se" os estádios, os adeptos, os títulos dos jornais diários desportivos, os comentadores, os grupos do café com os seus treinadores de bancada, e muitos irão à bola para dar vazão à frustração de não saber ler nem escrever, de não ganhar tão bem como o vizinho do lado, de ter só dois telemóveis que não são de 3G, do patrão não lhe ligar nenhuma, de não ter casas decentes para alugar, de ter de gastar uma fortuna para os filhos se licenciarem e depois ter de os sustentar em casa, pois não há empregos de qualidade para a ganapada, de não se poder reformar aos quarenta e cinco anos de idade por ter trabalhado apenas quinze, mas com as majorações e prémios é como se lá andasse há trinta e cinco, etc.

Vai voltar a estupidez dos comentadores, que irão repetir mais uma vez, como já o começaram a fazer ontem, que a falta do Zé-que-chuta, foi de facto uma falta, mas que era tão pequenina, que o árbitro não a devia ter assinalado, mandando assim o regulamento às malvas, apenas para satisfação do grupo a que pertencia o Zé-que-chuta, mesmo que os da outra equipa ficassem fulos e a puxar os cabelos gritando que estavam a ser roubados.

Vai reduzir-se certamente o espaço destinado a filmes, séries estrangeiras de qualidade, ou eliminar programas em que se discutem assuntos de interesse para todos, mas que são uma seca do 'carago', em benefício de mais meia-dúzia de horas cheias de adeptos dos três grandes - nunca percebi porque é que continuam grandes mesmo que não ganhem nada fora de portas - a comentar as decisões dos treinadores, dos outros opinadores, ou apenas a dizer mal das equipas de que não são sócios, numa parolice que raia o absurdo num universo kafkiano que só os portugueses conseguem entender.

Vai continuar a assistir-se à habitual falta de respeito pelos árbitros, com os jogadores a discutirem e a fazer magotes à volta dos mesmos, incluindo até pequenas agressões, mostrando que quanto mais ganham mais mal educados são, e os seus mentores a desculpar todas as suas atitudes lembrando que o jogo é para homens de barba rija, quando a maior parte dos que lá andam ainda não têm barba e se se vissem confrontados com algum magricela mal vestido num beco à noite, transformariam o branco dos calções numa outra cor mais ecura que nos lembra imediatamente algo que habitualmente fazemos em privado.

Eu, que até gosto de futebol, gostava de ver jornalistas, comentadores e dirigentes a criticar a falta de respeito que impera dentro das quatro linhas, a polícia a zurzir nas claques que não se sabem comportar, a Federação a multar dirigentes por incitamento à zaragata, o Sindicato dos jornalistas a retirar a carteira profissional a quem não tem qualidade para escrever e só serve para exaltar os ânimos dos pseudo-contendores, os professores a ensinar nas escolas que a competição não é sinónimo de batalha campal, e que a ministrada desse o bom exemplo de criar uma campanha de boa educação no futebol.

A ser assim, poderá ser que vá mais gente encher os estádios, os bilhetes possam baixar de preço, o espectáculo mereça ser visto, e que enfim, o futebol passe a ser a festa que já foi em tempos, em vez de ser apenas uma indústria na mão de patos-bravos e arrivistas que procuram fazer fortuna fácil.

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