Finalmente as férias grandes tinham chegado!
Numa altura em que ainda existiam famílias a residir na Baixa do Porto, não existiam telemóveis e que os próprios telefones rareavam e eram caros, as conversas faziam-se de janela a janela, entre prédios vizinhos que, à guisa de campainha, utilizivam um pau para tocar no vidro da janela adjacente em sinalética préviamente combinada.
E lá estava eu, a bater três vezes, na esperança de saber notícias do Armando.
- Então, é amanhã que bamos para o malagueiro?
- Sei lá, o meu pai 'inda num disse nada!
respondia-me ele, com o desalento estampado no rosto, pois era mais um dia que se perdia e com que sonhavamos dez meses por ano.
Perguntava eu de novo:
- Bem, atão bens p'rá minha casa ou bou p'rá tua?
- Como quiseres, mas hoje era melhor bires p'ráqui, pois a minha tia deu-me mais dois carros por ter passado p'rá segunda classe, e podíamos fazer uma corrida...
- Tá bem, deixa-me só ir buscar os meus e já boue.
Lá corria à caixa de brinquedos e tirava de lá os meus Dinky e Corgi Toys, para a corrida que iríamos fazer, para logo nos aborrecermos e brincarmos aos indíos e cóbois, até chegar a voz imperiosa de minha mãe chamando-me para almoçar, estragando assim a brincadeira que se interrompia para alimentar o pessoal, mas com recomeço aprazado para o início da tarde e com duração até ao pôr-do-Sol.
A cena repetia-se nos dias seguintes, sacramentalmente, até que inesperadamente lá chegava a véspera do grande dia, e o Armando ufano anunciava:
- Eh pá, o meu pai diz que amanhã vamos para o malagueiro, mas tens de estar pronto às oito menos um quarto.
Era o êxtase servido pela manhãzinha, e eu logo corria a demandar a minha mãe sobre os calções de banho, a touca e a toalha, para além dos vinte e cinco tostões da praxe, pois 'amanhã íamos para o malagueiro'!!!
Esse dia muito demorava a passar! Fazíamos planos, atrás de planos, sobre o que iríamos fazer, espreitavamos o céu para ver se o S.Pedro nos pregava alguma partida, mas o vôo das andorinhas e o seu chilrear, acalmava os nossos espíritos, pois era prenúncio afortunado.
No outro dia, calções e touca enrolados científicamente na toalha e presos com o cinto - é verdade, os calções de banho nesse tempo tinham cinto - postos sobre o ombro, aguardavamos o 'mestre' Vilas, projectista do Águia D'Ouro, e pai do Armando, que nos iria levar ao almejado sonho.
Saíamos da Batalha em direcção à Rua Alexandre Herculano, deslumbrando-nos com as cores das camionetas que saíam da Garagem Atlântico para Braga, Coimbra, Vila Real, destinos que para a nossa idade ficavam a idêntica distância das terras onde lutava com tigres, o incrível Sandokan.
Chegados às Fontaínhas, e passados os tanques, onde as lavadeiras tagarelavam ou cantavam (quando não discutiam forte e feio) enquanto lavavam a roupa, que mais tarde engomariam e distribuiriam pelos burgueses do Porto, metíamo-nos a descer a célebre Corticeira, cuja inclinação nos metia grande respeito (talvez temor fosse o melhor termo) e com um piso que pedia qualidades de equilibrista e sandálias velhas,ou de preferância solas de borracha, pois as novas, pareciam patins a deslizar por ali abaixo... livra!... só o pensamento arrepiava.
Pelo caminho cruzavamo-nos com carqueijeiros e padeiras que subiam carregadas com as suas mercadorias, num passo certo e estudado, em posição que arruinaria prematuramente a coluna mais resistente.
Chegados à marginal, olhavamos extasiados para o 'malagueiro', que corria impávido e sereno, com a sua cor verde-negra, e corríamos em direcção ao Sr. Américo, que no caíque aguardava passageiros para a praia do Borras.
Esperava-se um pouco, apareciam mais uns tantos e quando ele entendia, 'fechava' a entrada e rumava ao assento central, onde à força dos seus musculosos braços cruzava mais uma vez aquele rio, que nos meses de Verão, transformava aquele pescador em barqueiro e nadador-salvador.
Cinco minutos de emoção e chegavamos finalmente ao saudoso Borras.
Como a história já vai longa, para a próxima, falarei no resto.
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