14 agosto, 2005

Inferno

É com imagens terríveis, que somos confrontados diariamente pelos diferentes canais de televisão, com alguns (muitos) repórteres mais interessados em retratar a situação que está à vista, através de um discurso dramático que carrega muito nas cores negras do que vai sucedendo, em vez de apontar o dedo ao muito que não foi feito ou que está decididamente a favorecer a ocorrência de mais labaredas.

Infelizmente, um pouco por todo o lado, vimos casas construídas em zonas sem acessos ou com acessos que impossibilitam a chegada dos meios de socorro, mato seco rente a estradas e muros, zonas fabris coladas a zonas verdes, bocas de incêndio que não deitam água, gente a reclamar pela falta de ajuda mas que vai assistindo ao fogo de braços cruzados sobre o peito, autarcas que reclamam contra tudo e contra todos, esquecendo que não cumpriram os seus deveres ao licenciarem obras para zonas de risco sem cuidarem primeiro de acautelar a segurança dos mesmos, etc.

É dada voz e imagem, através de apontamentos ditos jornalísticos, a pessoas que não sabem minimamente do que estão a falar, a portugueses em choque que deambulam à procura de um qualquer milagre que os proteja, a irados personagens que, lógicamente, sentem que o seu incêndio carece de mais atenção do que o do vizinho, esquecendo esses mesmos apontamentos de referir factos que estão à vista de todos, como por exemplo armazenamentos de materiais altamente inflamáveis sem protecção adequada, oficinas de pirotecnia no meio de matas, serrações sem meios de combate a incêndios, inexistência de cisternas dotadas com equipamento mínimo para fornecimento de água e com pressão suficiente para combate a fogos, nas zonas mais afastadas dos postos de bombeiros, etc.

Ainda há dias, enquanto a SIC se referia um incêndio de grandes proporções na zona de Santa Maria da Feira, eu simultâneamente pasmava ao olhar por uma janela virada para V.N. de Gaia, vendo ao longe o estralejar de foguetes de uma qualquer festa que não olhava a temperaturas, nem a incêndios, para dar vazão a tal despropósito; num outro apontamento, vi uma boa vintena de matulões, que olhavam para o fogo que lavrava a quinze ou vinte metros de distância, junto à linha férrea, que assistiam sonolentamente e de sorriso nos lábios, enquanto um deles dizia a um repórter que estavam ali para defender o campo de futebol (pois claro!), que era em sintético e que não queriam que viesse a arder!

Claro, que combater o incêndio que estava ali ao pé já não era nada com estes ilustres personagens, pois era apenas verde que ardia e deveria ser pertença da REFER, e certamente cansava menos assistir do que intervir activamente; vi um irado presidente de Câmara que clamava contra o governo e contra a falta de meios aéreos, enquanto atrás de si, em plena zona industrial inserida em zona de denso arvoredo, numa serração, dois cavalheiros conversavam calmamente, olhando para as chamas que se aproximavam velozmente e que vieram mais tarde a atingir a dita serração (segundo parece), não me apercebendo de qualquer movimento que desse a impressão de que estavam a diligenciar no sentido de lhe fazer frente.

E que dizer dos srs. juízes que mandam para casa os incendiários confessos, em vez de os trancarem atrás das grades, possibilitando assim que eles continuem na sua tenebrosa faina, desmotivando os agentes policiais que os perseguem, pois estes vêm que o seu esforço, embora coroado de êxito, é desperdiçado por más decisões de gente irresponsável.

É este, de facto, o inferno em que vivemos, onde não existem campanhas de prevenção durante os nove meses que precedem a época de fogos florestais, mas que nos três meses habituais, dá azo à corja dos plumitivos opinadores de ocasião, e incipientes repórteres de momento, que, atarantados e impreparados, inflamam ainda mais o estado de espírito, quiçá na procura de um bode expiatório que lhes sirva para a noticiazinha, para no fim de Setembro se remeterem ao silêncio cúmplice que lhes proporcione mais três meses de forrobodó, no ano seguinte, alimentando-lhes o ego e os bolsos, quer pelo artiguinho escrito, a comparência em mesas-redondas, ou a receita provinda do trabalho de campo e extraordinário.

Não caberá ao cidadão, em primeiro lugar, acautelar o perímetro de que é proprietário, limpando-o de manta morta e criando uma zona de protecção adequada?

Não caberá a empresas e sociedades cumprirem os regulamentos sobre utilização e armazenamento de produtos inflamáveis, equipamento de segurança, limpeza de instalações, criando condições que respeitem a ligislação sobre higiene e segurança?

Não será a limpeza dos terrenos e ribeiras, dentro dos perímetros urbanos, da responsabilidade das autarquias?

Não é o licenciamento de obras responsabilidade das mesmas autarquias que deverão acautelar eficazmente pelo ordenamento do território que lhes compete administrar, indeferindo aquelas que não se conformem com o que se encontra determinado quanto a segurança contra fogos e fiscalizando as áreas à sua responsabilidade?

Não é ao governo que compete tratar das matas nacionais, ordenamento territorial, equipamento e prevenção de fogos, coordenação das entidades intervenientes, de modo a acautelar os despautérios que vão aparecendo um pouco por todo o lado?

Será que nos negamos a crescer, evoluir, prevenir, cuidar, preferindo o choradinho e a lamentação piegas, que anualmente nos martelam, sem que nada se transforme sensivelmente, preferindo apelar à caridade europeia?

Por mim, parece-me que já basta.

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